«Perdem-se os pensamentos que guardamos para nós.» (MFM)
Lilith guarda na mão uma navalha para aparar a ideia. Uma navalha mitológica, proprietária de um corte imaterial, mas intenso; uma exactidão invisível não deixa de ser exacta.
Não é uma eficácia louca.
Mas a eficácia não é um objecto que possas agarrar e guardar. Se o fosse, todos os seres vivos seriam eficazes. A eficácia está alojada no tempo e não no espaço. E o que não está no espaço não se pode guardar. O que habita o tempo é intocável, e é o mais essencial. O que podes guardar não é importante; o que tem volume, altura, largura pode ser guardado.
Os pensamentos habitam o tempo. Utilizam o tempo para existir, tal como o fruto utiliza a árvore para existir. Não há solo onde pousem os pensamentos, a não ser que consideres o cérebro uma instituição compacta, de onde as coisas não caem.
Escrever, desenhar: são ocupações evidentes do espaço. Do espaço magro que é uma folha, mas espaço.
Uma ideia não desenhada nem escrita não ocupa espaço, ocupa tempo. O cérebro é um espaço onde diversos fenómenos temporais ocorrem.
Uma ideia não tem lado direito ou esquerdo. Não tem peso ou volume, forma ou cor. Uma ideia tem segundos, ou minutos, por vezes horas, ou dias inteiros, meses.
Uma ideia não é curva nem é uma recta.
Lilith atravessou um caixão aberto, correu de um lado ao outro do caixão aberto. Apenas dois metros de comprimento: duas sensações estranhas: correr em espaço tão curto e esse movimento intenso dentro de uma caixa feita para guardar a imobilidade. Um exercício filosófico: correr dentro de um caixão.
De noite, Lilith era uma mulher que fazia barulho com as ideias. Incomodava os vizinhos.
Baixa o volume das ideias, alguém lhe disse.
Uma ideia alta, uma ideia baixa.
O interessante na inteligência é o modo como esta agarra qualquer objecto. As coisas não têm apenas uma pega, como as chávenas de café, as coisas do mundo são pegáveis por todos os lados, em todos os tempos, e pelos mais estranhos instrumentos: desde a mão, à pinça, às diversas tenazes. Estamos a ser agarrados por todo o lado, como se fôssemos loucos ou deixássemos que os outros o fossem sobre nós.
Queres ser louco sobre mim?
Eis a permissão mais generosa: Lilith aceitava que cada um pousasse sobre ela a sua loucura individual.
Podes ser louco à vontade, não contarei a ninguém.
Só as grandes amizades permitem a loucura.
A loucura como teste.
Ainda não sei se és meu amigo pois ainda não fiquei louco.
Gonçalo M. Tavares, Breves Notas sobre as ligações (Llansol, Molder e Zambrano)