terça-feira, 22 de maio de 2012

the big brother is always watching you


A primeira cicatriz de que me lembro é a que tenho no joelho esquerdo.  Da altura mais desportista da minha vida, era perita em dar as voltas mais rápidas ao bloco de prédios onde vivia, na bmx vermelha – a bicicleta mais cool jamais inventada. Andava, na época, preocupada em saber subir passeios  e descer a rampa mais íngreme da zona, que acabava – obviamente – numa curva de 90.º ou, para os mais nabos, directamente no muro da escola. Saber fazer aquela curva era tudo o que contava. (Admito desde já que todas as cicatrizes que fiz se reportam a esse tempo bem delimitado em que ninguém me fazia frente… depois disso deixei-me de acrobacias e dediquei-me aos livros – a ler, entenda-se.)
Mas voltando a essa primeira cicatriz, lembro-me perfeitamente do joelho esfolado, do frasco de betadine mágico e daquele que era sempre o momento determinante – a altura de arrancar a crosta. O controlo sobre o período exacto de convalescença era meu; nesse tempo não importavam as consequências – a horrível cicatriz; importava, sim, ficar impecável novamente e pronta para a próxima corrida.
Agora que os tempos são outros, através da maravilha que é a tecnologia – devíamos todos saber “the big brother is always watching you”  (ler os clássicos vai dando jeito para as pequenas surpresas da vida) – descobri que quem nos arranca as crostas – virtuais, diga-se, que nada disto é visceral, mas isso é outra conversa – são os outros.  Parva com a descoberta de que ando a ser diligentemente seguida por quem não me conhece, mas que decididamente acha que me vai conhecer por aqui (os números impressionantes de páginas visitadas e a cadência obsessiva dessas mesmas visitas é obra que merece a banda sonora do Psycho em jeito de homenagem), deixo aqui algumas notas que penso poderem ser de interesse:
1) Houve uma altura da minha vida em que uma bmx vermelha directamente entregue pelo pai natal (não, os meus pais não eram pós-modernos) era o meu maior orgulho;
2)  Também eu já me diverti a arrancar crostas à espera que ficasse tudo bem, mas rapidamente descobri que as cicatrizes notam-se sempre e são coisa pouco sexy;
3) Depois dessa época bem sadia da minha vida, mas muito pouco produtiva, dediquei-me aos livros e só posso aconselhar o mesmo caminho – uma voltinha ao bilhar grande e umas boas leituras, acredita, dá mais frutos do que se andar a perder tempo por estas paragens.

amanhã, sempre amanhã


Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...Sim, o porvir...

Álvaro de Campos

sexta-feira, 18 de maio de 2012

o texto reencontrado

do catálogo de todas as coisas que ficaram por arrumar.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

work in progress



Por enquanto é o único díptico escolhido, será exposto lá para Julho.


(informação técnica: as fotografias deveriam estar lado a lado, como num verdadeiro díptico, mas sou tecnicamente bastante naba nisto das publicações on-line. Perante a pergunta: Porquê? Fica a resposta: são duas fotografias que se complementam; de um lado um objecto, do outro um texto; a segunda não serve de legenda à primeira. Expô-las lado a lado é garantir-lhes a mesma dignidade fotográfica.)

quarta-feira, 2 de maio de 2012

da classificação



há na repetição algo de reconfortante. despidas do seu sentido original - porque repetidas até à exaustão - até as pequenas humilhações, que sempre me pareceram as mais infames, se tornam suportáveis.
(a outra hipótese é estar a perder a batalha. também pode ser isso. eu que nunca ganhei nada.)
sem surpresa, sorri generosamente a cada condescendência. engoli, sem me engasgar, a frase da praxe. também sou isto.