segunda-feira, 8 de novembro de 2010

leituras

A carta, já o disse, era impossível de ler, embora estivesse escrita em espanhol, ou pelo menos foi essa a conclusão a que chegámos Daniel e eu. Mas também poderia estar escrita em aramaico. Sobre isto, sobre o aramaico, lembro-me de uma coisa curiosa. Cláudia, que depois de olhar para a carta não mostrou a mínima curiosidade por saber o que dizia, nessa noite, enquanto Daniel e eu tentávamos decifrá-la, contou-nos um história que Ulisses lhe tinha contado havia muito tempo, quando ambos estavam na Cidade do México. Segundo Ulisses, dizia Cláudia, aquela parábola de Jesus Cristo tão famosa, a dos ricos, o camelo e o buraco da agulha, podia ser fruto de uma gralha. Em grego, disse Cláudia que Ulisses tinha dito (mas desde quando é que Ulisses sabia grego?) existia a palavra káundos, camelo, mas o n (eta) lia-se quase como i, e a palavra káuidos, cabo, maroma, corda grossa, onda a letra i (iota) se lê i. O que o levava a perguntar-se se, como Mateus e Lucas se basearam no texto de Marcos, a origem do possível erro ou gralha estaria nele ou num copista imediatamente posterior a ele. A única coisa que se podia objectar, repetia Cláudia que Ulisses tinha dito, era que Lucas, bom conhecedor do grego, teria corrigido o erro. Ora bem, Lucas sabia grego, mas não conhecia o mundo judeu, e ele pode ter suposto que o «camelo» que entra ou não entra no buraco da agulha era um provérbio de origem hebraica ou aramaica. O curioso, segundo Ulisses, é que havia outra origem possível do erro: segundo o Herr Pinchas Lapide (mas que nomezinho, disse Cláudia), da Universidade de Frankfurt, especialista em hebreu e aramaico, no aramaico da Galileia havia provérbios que usavam o substantivo gamta, maroma de barco, mas, se uma das suas letras consoantes se escreve defeituosamente, como acontece amiúde em manuscritos hebreus e aramaicos, é muito fácil ler gamal, camelo, sobretudo tendo em conta que na escrita do aramaico e do hebreu antigos não se usam vogais e elas têm de ser «intuídas». O que nos levava, dizia Cláudia que tinha dito Ulisses, a uma parábola menos poética e mais realista. É mais fácil que uma maroma de barco, ou que uma corda grossa, entre pelo buraco de uma agulha do que um rico entre no reino dos céus. E qual era a parábola que ele preferia?, perguntou Daniel. Ambos sabíamos a resposta, mas esperámos que Cláudia a dissesse. A do erro, evidentemente.

Roberto Bolaño, Os Detectives Selvagens

p.s. mistérios sem resolução foram escritos para serem lidos avidamente.

1 comentário:

jpm disse...

Antes de abrir o blog já sabia qual era a passagem.
É engraçado ver a que tu escolheste e aquela que eu escolhi...