sexta-feira, 29 de outubro de 2010

leituras

Passado algum tempo, Haze levantou-se e começou a caminhar de volta à cidade. Demorou cerca de três horas a alcançá-la. Quando lá chegou, parou numa loja de ferragens e comprou um balde de lata e um saco de cal, e depois seguiu para a casa onde vivia carregando estes produtos. Quando chegou, Haze deteve-se no passeio, abriu o saco de cal e encheu metade do balde. Depois, foi até uma torneira que havia perto dos degraus da entrada, encheu o resto do balde com água e subiu os degraus. A senhoria estava sentada no alpendre, embalando o gato.
«Qu'é que vai fazer co' isso, senhor Motes?», perguntou ela.
«Vou cegar-me», disse ele, entrando em casa.
A senhoria deixou-se ficar sentada durante mais algum tempo.
Não era mulher que sentisse maior violência nesta palavra ou naquela. Ela dava a cada palavra a mesma neutralidade, para ela eram todas iguais. Mas ainda assim, em vez de se cegar, se ela se sentisse assim tão mal matava-se, e não percebia porque haveria alguém de fazer diferente. Se fosse ela, teria simplesmente metido a cabeça num forno, ou talvez tomasse demasiados comprimidos para dormir e pronto. Talvez o senhor Motes estivesse apenas a ser desagradável, senão que razão é que uma pessoa pode ter para querer destruir assim a vista? Uma mulher como ela, que via tão bem, nunca suportaria ser cega. Se tivesse de ser cega então mais valia estar morta. Ocorreu-lhe então de repente que quando morresse ficaria também cega. E, assustada, fitou o mundo à sua frente intensamente, encarando este facto pela primeira vez. E então recordou a expressão «morte eterna» que os pregadores utilizam, mas imediatamente a apagou da sua cabeça, sem nunca mudar a expressão do rosto mais do que o gato.

Flannery O'Connor, Sangue Sábio

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