quarta-feira, 1 de setembro de 2010

das leituras

Tentei explicar isto no outro dia e talvez isso explique muita coisa. Ao contrário da maioria, os meus anos oitenta não foram famosos, desde a indumentária foleira, às cassetes dos mini stars, a única coisa que se safava era eu ser uma miúda feliz. Época áurea das fotografias de família, apareço sempre a sorrir, contente com a vida. Quanto à literatura: tinha revistas aos quadradinhos do tio patinhas e os livros da Anita; nesses tempos o meu verdadeiro orgulho era a colecção invejável de barbies, impecáveis e cheias acessórios.


Na altura em que devia ter começado a ler calhou não haver nenhum professor de português na zona e o meu pai, que acredito ter feito das tripas coração – mas que nunca teve muita paciência nem jeito para aquilo -- lá fez as vezes do professor primário que me faltava. Sentar-me na mesa da sala para a lição diária passou rapidamente a ser uma tortura de laivos kafkianos, eu não percebia a lógica daquilo, não sabia sequer o que era suposto estar a aprender e só a muito custo um “t” e um “e” se transformavam em ... Resultado: só quando tive uma professora a sério é que a coisa começou a funcionar.


Quando estava na segunda classe, quis o destino que os meus pais me tivessem de largar às 8h da manhã na escola, continuo a achar que era à minha mãe que custava mais essa minha hora de espera até as aulas começarem e com isso ganhei pontos e por pontos entenda-se cem escudos para comer um bolo no café do outro lado da rua. A senhora era simpática, eu tinha 7/8 anos e um sorriso capaz de desarmar quem quer que fosse. Os cem escudos rapidamente começaram a ser desviados dos bolos para os livros. O plano era o seguinte: Aos fins-de-semana, na secção dos livros do supermercado, escolhia um volume da colecção “uma aventura” e dava os quinhentos escudos ao meu pai, a minha mãe começou a desconfiar, mas não percebia de onde é que vinha o dinheiro e, por uns tempos, o plano resultou às mil maravilhas. Este foi, sem dúvida, o meu momento mais apaixonado pela literatura. Nada de leituras vanguardistas, nada de livros paradigmáticos da literatura infanto-juvenil (daqueles que aparecem em listas altamente reputadas tipo o moby dick). Era uma miúda feliz e a minha grande dúvida existencial da época - que eu me lembre - tinha aparecido uns anos antes e resumia-se ao seguinte: duvidava da existência do peter pan - sim o filme da disney teve algum impacto e, na dúvida, durante uns meses deixei a janela do quarto destrancada.


Não sei se esta introdução fará sentido para alguém, mas antes de escrever o que se segue quis deixar claro qual foi o momento em que percebi que gostava de ler.


Nunca gostei da expressão “leio compulsivamente”.

Não gosto da expressão, porque é exagerada. É aquele exagero bacoco – não sei se me faço entender, é como quando nos perguntam pelos nossos defeitos, a resposta “sou teimoso” é a escolha invariável– o ler compulsivamente tem disso, aquela auto-censura cínica, nem que eu quisesse conseguiria evitar ler tanto - segue-se sempre um sorriso contido e sobranceiro - aquele defeito é sobretudo uma virtude e ler compulsivamente é melhor do que ler.

São normalmente estas as pessoas que seguem diligentemente as inúmeras listas dos livros a ler - os melhores do ano, os melhores do século, os recomendados pelo blog/revista da moda, os melhores sempre desconsiderados pelos cânones clássicos, mas que são verdadeiramente os melhores - e nunca se vêem com um livro que não tenha sido previamente aprovado por alguém que percebe do assunto. E tendo sido aprovado, não se discute. Exalta-se, enaltece-se, fica-se sem palavras... mas nunca se discute.


Eu não leio compulsivamente, desde que aprendi a ler e comecei a trocar bolos por livros, só leio, sem desmesura.

4 comentários:

paperdoll disse...

desmesuras são típicas de quem não tem muito para dizer. fazem muita publicidade a algo banal porque, sejamos realistas, têm uma vidinha triste.

ps: agora senti-me mal por estar a acabar de ler o grande gatsby! pelo menos não faço publicidade disso... e também não "sigo diligentemente as inúmeras listas dos livros a ler", conta para alguma coisa? :)

a. disse...

não me interpretes mal, isto não é nenhuma apologia a não ler os ditos clássicos, é só um desabafo contra quem acha que isto é uma espécie de de corrida de obstáculos.

pipo ou outro nome qualquer disse...

eu gastei todas as minhas semanadas para completar o xadrez do dragon ball e depois foi a coleção toda dos arrepios heheh

a. disse...

eheheh outros tempos ;)