terça-feira, 11 de janeiro de 2011

no meu caminho II



O caminho que faço para casa demora-se por duas ruas ingratas. São o espelho do abandono a que um certo centro da cidade foi votado. Fazem parte daquela zona da almirante reis que já não se recomenda, que não se desce, que se evita sem pudor. Gosto delas, não por uma qualquer decadência estética, mas pela sua resistência absolutamente inesperada. Pela loja de velharias onde comprei um catálogo de pintura russa por três euros. Pelo alfarrabista com promoções de clássicos. Pela loja de ferragens com vassouras penduradas no tecto. Pela padaria onde me ofereceram torta de laranja e onde compro o pão. Pela loja de roupa interior que adorava fotografar de uma ponta à outra.
Mas também pela resistência de determinadas pessoas, que se recusam a ser expulsas de uma zona como esta - ingrata e mal-amada.

4 comentários:

paperdoll disse...

soa muito bem. como te diria qualquer um dos moradores dessa rua, e mantendo o espírito, "quem feio ama, bonito lhe parece"! :)

lpb disse...

se o problema fosse de uma decadência estética, encontrar-se-iam sempre redenções e a hipótese de transcender o espaço. não acho que a decadência seja estética. é uma decadência moral e social. escavacada no seu âmago, a cidade esvai-se - não sei se há resistências, inesperadas ou não, ou rituais de desistência prolongada. andar por essas ruas e becos é descer à terra e cartografar a arrogância de quem toma decisões e condenou essa e outras zonas de Lisboa a um estertor eterno.

digo-o porque, por onde passei - andei num infantário da almirante reis e num colégio perto da praça do chile, pelo que as memórias sensoriais se confundem com as cognitivamente articuladas - cheirava-se a solidão e o desespero. sim, têm cheiro de lixo e coisas podres, que são isso mesmo e não devemos ter medo de nomeá-las - porque há aí vidas destroçadas pelos ambientes opressivos da "inner city" lisboeta

haverá sempre focos de resistência, enquanto houver humanidade. são as armas dos fracos, dos desempoderados - essas oferendas, essas preciosidades escondidas em cavernas - que resgatam a cidade de um fim elegíaco. quando estivermos todos cercados por comunidades amuralhadas.

e deixo a pergunta, a que não respondo porque não tem resposta: antes de nos preocuparmos com as comunidades amuralhadas, não nos devíamos preocupar com as paredes que caem? -talvez, só talvez, reste um corpo envelhecido lá por baixo.

toda a resistência é finita, ao passo que a memória tem o dom de figurá-la como eterna. mas apalpar o desgaste das relações humanas que sustentam essas comunidades, ano após ano após ano, debaixo do sulfuroso ataque dos betinhos de cara fresca, é revoltante.

anita disse...

Simplesmente delicioso de ler... e ver.

a. disse...

obrigada :)